Marco Legal da Pesquisa Clínica: apresentamos os principais pontos do PL
A Câmara do Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 7082/2017, que estabelece princípios, diretrizes e regras para as pesquisas clínicas com seres humanos no Brasil. O objetivo é criar o marco legal das pesquisas clínicas, cujas regras atualmente se encontram em normas infralegais.
O PL foi proposto em 2015, pela Senadora Ana Amélia-RS, e agora retornará ao Senado para nova apreciação das alterações realizadas pela Câmara, onde passou por algumas comissões e foi debatido em audiências públicas, com a participação de representantes da indústria farmacêutica, universidades, associações médicas, entre outros.
Além de passar a regular, em lei, uma matéria até então tratada em normas infralegais – o que deve conferir maior segurança jurídica ao tema -, o PL também altera regras atualmente vigentes.
Dentre as novidades propostas, uma gerou grandes debates entre os parlamentares: a regra de fornecimento gratuito dos medicamentos aos participantes da pesquisa. Atualmente, nos termos da Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ao final do estudo, o patrocinador deve garantir aos participantes o acesso gratuito e por tempo indeterminado “aos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes”. O PL, contudo, estabelece que o fornecimento gratuito poderá ser interrompido, mediante submissão de justificativa ao CEP, em determinadas circunstâncias, como mencionamos mais adiante.
Outro ponto de destaque é a indicação de que os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), responsáveis pelos protocolos de pesquisa, serão subordinados a registro, certificação, fiscalização e capacitação por órgão a ser determinado pelo Poder Executivo, retirando determinadas competências da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), vinculada ao CNS.
O PL está distribuído em 9 capítulos, cujas principais disposições são brevemente apresentadas a seguir.
Definições e Exigências às Pesquisas
O Capítulo I apresenta as definições essenciais dos termos tratados na futura norma, como centro de pesquisa, comitê de ética em pesquisa, consentimento livre e esclarecido, contrato de pesquisa, ensaio clínico, evento adverso, entre várias outras. É importante notar que, a partir da previsão no texto da lei, tais definições ganharão atributo jurídico relevante, que deverá ser considerado pelo setor na interpretação e aplicação da norma.
A pesquisa deverá atender exigências éticas e científicas aplicáveis às pesquisas com seres humanos, como o respeito aos direitos e segurança dos participantes, avaliação de risco-benefício, embasamento científico, competência dos profissionais envolvidos, respeito à confidencialidade e privacidade dos participantes e observância às boas práticas clínicas.
Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs)
Os CEPs são órgãos colegiados independentes, de natureza pública ou privada, de caráter consultivo e deliberativo, responsáveis pela revisão e aprovação ética dos protocolos de pesquisa. Os CEPs deverão:
- contar com equipe multidisciplinar qualificada e com experiência necessárias para analisar todos os aspectos das pesquisas, devendo ter dentre seus membros, um representante dos participantes;
- estar submetidos à fiscalização por órgão técnico competente, a ser designado pelo Poder Executivo;
- assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes, antes e durante a pesquisa; e
- avaliar o modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a ser utilizado para a respectiva pesquisa.
O PL prevê prazos: os processos de análise ética deverão ser concluídos em até 30 dias após a submissão integral dos documentos de pesquisa, sendo possível o pedido de reconsideração ao próprio CEP em caso de rejeição. As pesquisas de interesse estratégico do SUS para o atendimento à emergência pública terão prioridade na avaliação, contando com procedimentos e prazos específicos, a serem estabelecidos em regulamento próprio.
A análise ética dos projetos deverá considerar princípios como proteção à dignidade, incentivo ao desenvolvimento científico, transparência, eficiência, multidisciplinaridade, e respeito às boas práticas clínicas. Também está prevista a participação de terceiros (especialistas) e grupos de vulneráveis na avaliação dos projetos, mediante convite, mas sem direito a voto.
Proteção aos Participantes
O Capítulo III do PL trata da proteção aos participantes das pesquisas.
A participação será livre, garantindo-se ao voluntário o direito de retirar seu consentimento a qualquer tempo, sem necessidade de justificativa, ônus ou prejuízo.
O participante formalizará a respectiva autorização em TCLE a ser assinado também pelo pesquisador responsável e, caso o participante e seu representante legal não sejam capazes de ler, também será assinado por testemunha imparcial.
O TCLE deverá estar redigido em linguagem clara e objetiva, não sendo válidas quaisquer informações que indiquem renúncia de direitos pelo participante ou isentem o pesquisador, a instituição, o patrocinador ou seus agentes de danos causados ao participante.
A participação é, em regra, gratuita. Excepcionalmente, poderá ser concedida vantagem ou remuneração a participantes saudáveis em ensaios clínicos de fase I ou bioequivalência, desde que observados determinados critérios, como a inscrição no Cadastro Nacional de Voluntários em Estudos de Bioequivalência e a vedação à participação em mais de uma pesquisa.
O participante será indenizado pelo patrocinador, por danos decorrentes de sua participação na pesquisa, sendo assegurada a necessária assistência à saúde do participante (também de responsabilidade do patrocinador). No caso de pesquisas patrocinadas por instituições governamentais ou sem fins lucrativos, a instituição local colaboradora poderá assumir as responsabilidades dos patrocinadores quanto à indenização e assistência aos participantes, desde que previsto no TCLE.
Há, também, regras específicas aplicáveis ao participantes de pesquisa clínica considerados em situação de vulnerabilidade, ainda que circunstancialmente. Em algumas hipóteses, está prevista a comunicação ao Ministério Público.
Responsabilidades do Patrocinador e Pesquisador
O Capítulo IV trata das responsabilidade do patrocinador, do pesquisador-patrocinador (profissional responsável por uma pesquisa realizada com recursos e materiais próprios ou de entidades de fomento à pesquisa e outras, sem fins lucrativos) e do pesquisador propriamente dito.
Dentre as responsabilidades do patrocinador e do pesquisador-patrocinador, destacam-se:
- a garantia de qualidade e controle da pesquisa;
- o tratamento adequado de dados coletados;
- a utilização de equipe qualificada com recursos apropriados para o estudo;
- notificação à ANVISA sobre descobertas que afetem a segurança dos participantes; e
- a indenização aos participantes e o custeio com procedimentos, exames e ações para a resolução de eventos adversos.
Já o patrocinador, exclusivamente considerado, deverá (dentre outros pontos):
- deter qualificação técnica necessária;
- realizar o acompanhamento clínico dos participantes, zelando pelo bem-estar e segurança destes;
- apresentar ao CEP relatórios periódicos sobre o andamento da pesquisa; e
- comunicar ao CEP e ao patrocinador a ocorrência de eventos adversos.
Tratamento Pós Ensaio Clínico (Fornecimento Pós Estudo)
Antes do início do ensaio clínico, o patrocinador e pesquisador deverão submeter ao CEP um plano de acesso pós-estudo, justificando a necessidade ou não de fornecimento gratuito do medicamento experimental – após o término do ensaio clínico – àqueles que o necessitarem.
Concluído o ensaio clínico, o pesquisador deverá avaliar individualmente, para cada participante, a necessidade de continuar o tratamento experimental. O PL deixará os critérios dessa avaliação para uma vindoura regulamentação, mas já antecipa algumas regras, como, por exemplo: (i) elaboração de programa de fornecimento pós-estudo; (ii) continuidade do acompanhamento de segurança do participante; (iii) o programa de fornecimento pós-estudo deve ser iniciado apenas após a aprovação regulatória necessária.
Há outros requisitos que devem ser observados no fornecimento gratuito pós-ensaio clínico do medicamento experimental: por exemplo, deverá ser realizado sempre que (i) for considerado a melhor terapia ou tratamento para a condição clínica do participante da pesquisa; e (ii) apresentar relação risco-benefício mais favorável em comparação com os demais tratamentos disponíveis. Outros requisitos também devem ser considerados:
- a gravidade da doença e sua ameaça à continuidade da vida do participante;
- a disponibilidade de alternativas terapêuticas satisfatórias para o tratamento do participante da pesquisa, considerada sua localidade;
- se o medicamento experimental contempla uma necessidade clínica não atendida; e
- evidência de que o benefício supera o risco no uso do medicamento experimental.
Neste caso, o fornecimento ficará sob a responsabilidade do patrocinador, podendo ser interrompido na medida em que houver justa causa, a ser submetida para avaliação pelo CEP, com base em critérios trazidos pelo próprio PL, dentre os quais se destacam:
- decisão do próprio participante da pesquisa;
- cura da doença ou agravo à saúde;
- introdução de alternativa terapêutica satisfatória;
- ausência de benefício no uso continuado do medicamento experimental;
- reação adversa que inviabilize a manutenção do tratamento (a critério do pesquisador);
- impossibilidade de obtenção ou fabricação do medicamento (desde que fornecida alternativa terapêutica);
- transcurso de prazo de 5 anos, contados da disponibilidade comercial do medicamento no país; ou, ainda,
- disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde.
Nossa avaliação é a de que este capítulo será o que mais poderá sofrer novos debates e novas mudanças durante a tramitação do PL na Câmara dos Deputados.
Armazenamento e Utilização de Dados e Material Biológico
O consentimento para disposição de material biológico humano em vida ou post mortem deverá ser formalizada em TCLE, de forma gratuita, altruísta e esclarecida. Deverão ser assegurados todos os direitos listados no PL, dentre os quais se destacam o direito (i) de ampla informação sobre benefícios e riscos relacionados à disposição do material; (ii) de retirar o consentimento a qualquer tempo, cabendo-lhe a devolução das amostras; (iii) de ser informado sobre descobertas relacionadas ao ser material biológico, incluído o aconselhamento genético, se cabível; (iv) ser informado sobre uma série de atividades que possam ser feitas com seu material, inclusive o uso em outros estudos futuros ou a remessa para centro de estudo estrangeiro.
O material biológico pertence ao participante da pesquisa, enquanto sua guarda – e todas as responsabilidades a ela associadas – cabem à instituição. Já o gerenciamento caberá à instituição (no caso de biobanco) ou ao pesquisador que coordena a pesquisa (no caso de biorrepositório).
O prazo de armazenamento em biobanco é indeterminado, já o prazo de armazenamento em biorrepositóro deverá obedecer o cronograma previsto no projeto de pesquisa aprovado. Já os dados da pesquisa serão armazenados pelo patrocinador, sob responsabilidade do pesquisador, pelo prazo de 5 anos após o término ou a descontinuidade da pesquisa, e pelo prazo de 10 anos no caso de produtos de terapias avançadas – prazos que podem ser alterados mediante autorização do CEP, após solicitação do pesquisador.
O material biológico considerado material de partida, e as informações associadas não são passíveis de proteção de direitos de propriedade intelectual, sendo vedada sua comercialização em desconformidade com a legislação aplicável.
Os dados da pesquisa serão armazenados pelo patrocinador, sob responsabilidade do pesquisador, por 5 anos após o término ou descontinuidade da pesquisa, ou 10 anos no caso de produtos de terapias avançadas.
Publicidade, Transparência e Monitoramento da Pesquisa
O Capítulo VIII do PL estabelece obrigações para garantia da transparência, ética e responsabilidade na condução de pesquisas. Para tanto, determina que o pesquisador deverá apresentar reportes ao CEP sobre o andamento ou descontinuidade dos projetos aprovados, sobre a ocorrência de eventos adversos graves e violações de protocolo de pesquisa, e aos participantes sobre o resultado do estudo em que estiveram envolvidos.
Os dados da pesquisa serão disponibilizados em website de acesso público, o que será definido em regulamento.
Disposições Finais
Nas disposições finais, o PL determina que a ANVISA terá 90 dias para analisar as petições primárias de ensaios clínicos com seres humanos, para fins de registro sanitário de produto sob investigação. Excepcionalmente, para produtos definidos em regulamentação como complexos, este prazo será de 120 dias.
Por fim, estabelece que a condução de pesquisa em desconformidade com os seus termos configurará infração ética, sujeitando o infrator a sanções civis e penais, sem prejuízo daquelas ainda previstas por seu conselho profissional, além de eventuais infrações sanitárias.