Poder administrativo sancionador e inseguraça jurídica: um debate necessário
O Brasil tem buscado alavancar sua recuperação econômica a partir de esforços contínuos dos setores público e privado para ampliar a demanda produtiva nacional e aperfeiçoar o ambiente de negócios, contribuindo para os objetivos econômicos e sociais da ordem constitucional fundada em 1988. O Direito margeia todas essas questões: os esforços de ambos os setores só são capazes de produzir resultados econômicos (e sociais) concretos se o regime jurídico-administrativo for hábil e apto a garantir planejamento [1], previsibilidade e segurança jurídica.
Contudo, há um obstáculo significativo que precisa integrar as pautas de discussão do Direito brasileiro com bastante urgência: o regime jurídico-administrativo, especificamente seu aspecto sancionador, tem seguido na contramão da pretendida visibilidade e da necessária segurança jurídica, sem as quais não se constrói um ambiente de desenvolvimento econômico continuamente fortalecido.
Tem sido cada vez mais comum e frequente a imposição de sanções administrativas a empresas reguladas com fundamento em alegações genéricas e hipotéticas: é crescente o número de processos administrativos sancionadores que, revestidos de uma aparente legalidade, estão, na verdade, sustentados em base jurídica precária, muitas vezes sustentados em alegações de fraude, embaraço à fiscalização, riscos genéricos, hipotéticos ou inexistentes, baseados unicamente em presunções e sem o devido embasamento técnico-legal.
Não se desenvolve um ambiente econômico fortalecido sem amadurecer e aperfeiçoar os regimes jurídicos que lhe dão esteio. No caso dos setores econômicos regulados, o regime jurídico-administrativo tem papel elementar e estruturador nessa tarefa, e, principalmente por essa razão, precisa ser sempre repensado e ter suas ações constantemente debatidas.
O setor privado desempenha importante papel no desenvolvimento econômico do país, e isso se dá a partir da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, que é princípio constitucional inscrito na Ordem Econômica e Financeira da Constituição Federal (artigo 170, inciso IV). José Afonso da Silva reforça essa questão em seus ensinamentos:
“A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta no art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos livres exercícios de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei” [2].
No mesmo sentido se posiciona André Ramos Tavares:
“A livre-iniciativa, portanto, garante a possibilidade de autodirecionamento econômico dos particulares, mas impõe também a necessidade de o empresário se submeter às limitações impostas pelo Poder Público, quando for o caso, e dentro do espectro válido de limitações que podem ser estabelecidas. Na falta de lei condicionadora, a liberdade será ampla, apenas devendo ater-se aos princípios constitucionais. ‘O importante, contudo, é notar que a regra é a liberdade. Qualquer restrição a esta terá que decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela’” [3].
É certo que o constitucionalismo brasileiro busca harmonizar o exercício da livre iniciativa privada com a realização da justiça social. Justamente por essa razão, cabe ao poder público a função de regular e fiscalizar as atividades econômicas, apenando as empresas apenas quando ultrapassarem as limitações que lhe cabem no exercício de determinada atividade.
A iniciativa privada, portanto, goza de ampla liberdade até onde encontrar limites impostos nas leis e nos regulamentos delas decorrentes. Contudo, tais limites não estão submetidos ao mero alvedrio do poder sancionador dos órgãos reguladores de determinadas atividades econômicas: não há espaço para apenamentos administrativos baseados em alegações genéricas ou hipotéticas, em presunções ou subjetivismos. O Direito brasileiro jamais outorgou carta-branca para o exercício de um poder sancionador indiscriminado, ilimitado e antijurídico, cujos reflexos abalam a segurança jurídica e contribuem para um desenvolvimento econômico moroso e frágil.
A Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro (Decreto-Lei nº 4.57/1942, com suas posteriores alterações) revela, no art. 20, a preocupação do legislador com decisões – inclusive administrativas – baseadas em valores jurídicos abstratos ou mesmo genéricos. Também se preocupou o legislador com as decisões administrativas proferidas sem se avaliar e sopesar as consequências práticas que é capaz de acarretar. Isso tudo ocorre porque é também papel do Direito ser instrumento de regulação que vise à construção de um ambiente socioeconômico fortalecido e, sobretudo, sustentado ações que garantam e fortaleçam a segurança jurídica do país.
As discussões sobre os limites da atuação estatal no domínio econômico, mais especificamente sobre a regulação e fiscalização da atividade econômica privada, ganharam tração com a vigência da Lei Federal nº 13.874/2019, que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.
A Sociedade Brasileira de Direito Público (“SBDP”) posicionou-se sobre o conteúdo da lei antes mesmo de sua vigência, qualificando-a como “uma novidade jurídica relevante. Será a primeira lei editada no Brasil com o objetivo de evitar a ineficácia e os excessos de estado utilizando a estratégia de organizar em âmbito nacional o conjunto de intervenções econômicas de autoridades sobre o setor privado.” [4].
Referida lei disciplina e limita as possíveis interferências estatais sobre o domínio econômico privado, ao tempo em que garante a sua eficácia. É marco jurídico definidor de técnicas e limites da atuação do Estado como agente regulador, fiscalizador e sancionador, valendo citar o artigo 2º, que estabelece relevantes princípios, tais como (i) a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; (ii) a boa-fé do particular perante o poder público; e (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. Seu artigo 3º, de forma explícita, qualifica os direitos de liberdade econômica como “essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País”.
As ações de controle e fiscalização exercidas pelos órgãos administrativos que regulam determinadas atividades econômicas precisam, portanto, ser repensadas e debatidas. Também precisam ser discutidas as sanções administrativas que, de forma crescente, têm sido dirigidas a empresas reguladas de forma dissociada da correta aplicação e interpretação das normas jurídicas. É preciso, sobretudo, compreender a relevância do debate jurídico travado na arena administrativa e que dela não deveria passar, seja para construir um ambiente jurídico-administrativo competente e fortalecido, seja para evitar que o Poder Judiciário se sobrecarregue com discussões que deveriam ser resolvidas fora dele.
Portanto, o desenvolvimento econômico do país, diretamente conectado aos anseios constitucionais, depende, necessariamente, dos esforços contínuos dos setores público e privado, mas, sobretudo, da construção de um regime jurídico-administrativo forte e tecnicamente preciso, sem espaço para medidas capazes de estimular a insegurança jurídica, como tem ocorrido. Esse é um debate necessário e urgente, cujos frutos serão colhidos não só pelo Direito, mas por toda a nação.
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[1] Planejamento na acepção tratada na obra de Eros Grau: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
[2] SILVA, José Afondo da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros. p.767
[3] BASTOS, Celso Ribeiro. Direito econômico brasileiro, p. 114, apud TAVARES, André Ramos. Direito constitucional da empresa. Rio de Janeiro: Editora Forense; 2013. p.33.
[4] Disponível em https://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/04/Lei-Nacional-da-Liberdade-Econ%C3%B4mica-FGV-Direito-SP-sbdp-vers%C3%A3o-final-04.04.19.docx.pdf, com acesso em 13/2/2023.
Artigo também disponível aqui.